30/05/2016

O dia de um derrotado - Crônica 63

Seu dia começa com uma luta violenta contra si mesmo para sair da cama. Uma preguiça e o peso no corpo por conta de uma noite mal dormida, acordando de uma em uma hora, no mínimo. Tudo bem. Afinal, passava da uma hora da manhã do domingo quando você resolvera se deitar e tentar dormir um pouco para se levantar às seis e meia. Não era muito tarde da noite, mas, você já estava um pouco cansado, sonolento. Enfim, alguns minutos ainda deitado para tomar coragem e abrir os olhos. A luz está acesa e você sabe que sentirá aquele choque momentâneo, a luz se acendendo em um quarto escuro com os olhos desacostumados. Quando isso acontece, dá até para sentir as pupilas contraindo para diminuir a intensidade da luz. Pisca os olhos várias e várias vezes olhando para o teto esperando se acostumar novamente. O sono ainda pesa; parece que há cola entre as pálpebras ou um quilo de areia que te força a contrair todos os músculos da face – fazendo aquelas caretas típicas de quem não dormiu nada a noite passada e acordou sem a menor vontade de sair da cama.

Qual o motivo de tanta falta de vontade? Simples: mais um dia, mais uma segunda-feira começando e você aí, entrando no sexto mês sem emprego. Eram tão grandes suas perspectivas, seus planos, suas ideias de ganhar a vida e tornar as coisas mais fáceis. Não. Você não queria riqueza, não queria ostentação, opulência. Queria apenas poder pagar as contas e ter uma boa grana no fim do dia para – metade você guardaria e a outra metade gastaria com um pouco de lazer e bons momentos com sua esposa. Ah, sim, é verdade, você tem uma esposa. Ela trabalha o dia todo, você a leva e traz de volta do trabalho todos os dias nos últimos meses, prestando um serviço de taxi diário, já que não pode fazer de outro jeito, e a cada metro no asfalto você calcula a quantidade de combustível gasto preparando-se psicologicamente para dizer a ela de uma maneira macia que “temos que abastecer amanhã”, sem parecer que a está roubando – mesmo o veículo sendo dela. Você fica em casa na maior parte do tempo, pois, já rodou a cidade toda atrás de uma ocupação remunerada... e nada. Não há vaga para você. Exatamente. Não há vaga para você. Motivo...? Ninguém sabe. Pois, vê todos a sua volta dando graças a deus por terem conseguido um emprego, tendo feito uma semana apenas depois que eles pediram – sim, pedira – demissão do emprego anterior. Bom, você não é o maior especialista, mas, tem uma ideia de que em uma economia nacional instável pela qual o Brasil de dois mil e dezesseis está passando, ninguém pode se dar ao luxo de pedir demissão de seja qual for o ofício. Ou essa gente tem uma influência extremamente forte, ou são uns sortudos filhos da mãe. Tudo o que você pode fazer é dar parabéns e se perguntar o quê há de errado com você – e por que você não ganha na sena de uma vez por todas, seu inútil.

Seria uma boa, não seria? Muita coisa se resolveria da noite para o dia. Você ajudaria a si mesmo e a muita gente ao seu redor. Doaria equipamentos para hospitais infantis e de combate ao câncer, cuidaria dos idosos, dos animais de rua, criaria campanhas de combate à violência sexual, e tentaria levar uma vida simples, honesta e justa, mesmo com uma boa grana na conta bancária. Mas, esqueça. Você não vai ganhar na sena. Pelo jeito você não merece e todas as suas boas vontades e boas ações não o levarão a isso. Pois, não significam nada. Você vai continuar bem aí onde está, exercendo esta sua inutilidade pública da melhor maneira possível.

E faça um favor aos outros e a si mesmo – e à sua esposa: reclame calado. Pare de encher o saco com os seus problemas. Todos já possuem suas próprias frustrações. Você não é especial e a realidade não é uma propaganda de seguro de vida. Você não tem os dentes brancos e o penteado da moda. Você quase nem tem cabelo, pelo amor de deus. Se toca.

E por falar em “se toca”, isso é uma das cosias que você faz muito ultimamente, mesmo se perguntando do começo ao fim do processo o porquê está fazendo isso, pois, nem para isso você tem paciência e tanta vontade assim. Deve ser para passar o tempo, e você chega a essa conclusão em todas as vezes. Faz isso apenas para passar o tempo.


O fato é que você é um derrotado, talvez até um desajustado. Alguém que não consegue o que quer, por falta de conseguir, não por falta de tentar. Parece mesmo que ninguém lhe dá uma chance, que ninguém quer saber o que você pensa, quais são suas capacidades e potencialidades. Todas as noites você vai para a cama com o mesmo pensamento: amanhã será um dia melhor. Mas, não é. Acordar dá trabalho. Levantar da cama é praticamente um suicídio. Pois, já não aguenta mais.
Com o passar do tempo, você já não admira mais o nascer do sol, o brilho de um novo dia. Olha ao espelho e só penteia o cabelo para não parecer tão lunático. Mas, não se preocupa mais com quem está ali no reflexo. Não conhece e não confia mais naquela pessoa que há tanto tempo você admirava e confiava. Não há mais o que admirar e confiar. Não há mais o que pensar, a não ser nesta palavra: derrotado. É o que surge em sua testa quando olha por mais de um segundo a si mesmo no espelho. DERROTADO. Assim mesmo, em letras maiúsculas como num desenho animado dos anos cinquenta. A diferença é que você não fará sucesso, não está na telinha, não tem um nome que remeta a qualquer coisa positiva, qualquer lance de risada por mais simples e forçado que seja. Seu rosto não agrada aos outros e não agrada a si mesmo.

Você acordou, levantou, foi ao banheiro e cumpriu todo o ritual matinal. Ligou o telefone celular, ele travou. Minutos depois, travou de novo. Respirou fundo, foi até a cozinha para passar um café e deu de cara com uma pia entupida. Bom, isso não é culpa sua. Casa velha mal construída, encanamento ruim. Mas, sente muito por não ter a capacidade de alugar uma casa melhor. Enfim. O primeiro passo é por um pouco de água no canecão para ferver. O canecão está sujo. Você ferveu leite na noite passada e se esqueceu de lavar o bendito canecão. Uma lavada rápida apenas com água deve resolver, pensa você. E faz isso. Depois, senta o recipiente em uma das quatro bocas do fogão. Abre a caixa de fósforos. Abre o gás. Risca o palito. Nada. Tenta de novo um pouco mais forte. Uma faísca inútil, e nada de fogo. Desliga o gás. Abre a caixa e pega outro palito. Faz o mesmo processo: caixa, gás, palito. Nada. Outro palito quebrado e nada de fogo. Respira fundo. Tem um isqueiro estilo Zippo sobre a mesinha. Você se lembra que colocou fluido no isqueiro há poucos dias. O algodão deve estar molhado ainda. Também trocou a pedra de faísca e puxou um pouco o pavio para fora. Testou várias e várias vezes e funcionou com uma chama praticamente olímpica. E agora é hora de acender o fogão com ele, e finalmente ferver a droga da água para fazer a droga do seu café e começar a droga do seu dia. Droga! Gás, isqueiro... nada de fogo. Risca, risca e risca. Faísca para todo o lado, e nada de fogo. Talvez o tal do homem das cavernas tenha conseguido muito mais rápido. Você começa a se sentir um escoteiro altamente preocupante que certamente nunca ganhará um bordado no uniforme. Ultima tentativa, agora com a faísca direto na boca do fogão, já que não tem outro jeito. Três, quatro, cinco tentativas e seu dedão já está latejando. Fogo. Agora sim. Demorou o quê mais ou menos? Alguém contou? Enquanto a água ferve, você desentope a pia, lava uma colher, pega o pote de café (que já está no fim) dentro da segunda gaveta, lava o filtro de pano (por que você não tem mais sua cafeteira moca), põe dentro o pó suficiente apenas para uma xícara – pois, apesar de tudo, você ainda presa por um café fresco. Despeja um pouco da água quente na xícara para aquecê-la, segundos depois, joga esta água fora e, finalmente, passa a droga do café. Pronto. Agora sim. Parece que tudo voltou ao normal.

Ledo engano. Pegou o café, ligou o notebook para escrever estas palavras e o computador travou logo de cara. Assim, sem mais nem menos. Ligou, iniciou, travou. Você respirou fundo, reiniciou a máquina e tentou de novo. O mouse não está funcionando direito. Há dias vem travando, e agora está praticamente inutilizável. Você reaprende fazer todos os comandos apenas pelo teclado. Bom. Legal. Vamos lá. Abriu o Word, pois, você escreve no Word, e o programa demorou um século para iniciar. O seu café já está esfriando e mesmo assim você bebeu meia xícara. Gosta de beber o café enquanto escreve, mas, com o programa sem responder do jeito que está, é melhor não desperdiçar a temperatura da bebida que deu tanto trabalho. Você reinicia o programa ele abre no tempo certo. Começa escrever e logo na primeira frase, quando você precisa usar a letra “c” na palavra “começa” de “Seu dia começa...”, a tecla simplesmente não responde. O que fazer? Reiniciar a coisa toda. Notebook, programa, e vamos lá de novo, uns cinco minutos depois, sendo que tudo, quando funcionava corretamente, se resolvia em cerca de trinta segundos. Pois bem. Recomeçando. Digita novamente a palavra “começa” e a letra “c” novamente não responde. Você tecla a barra de espaço e a letra “c” aparece. Você pensa que tem alguma coisa errada, e percebe que tem mesmo quando pressiona a tecla “seta para a direita” – que, se você olhar bem, verá que fica bastante longe da tecla “c”. Bem, quando você faz isso, quando pressiona a tecla “seta para a direita”, a letra “c” é possuída por alguma espécie de demônio da repetição e começa a aparecer em fila sem parar e sem você ter feito absolutamente nada. Fica ali, aparecendo, serpenteando pela página sem você ter pedido isso. Sua vontade de dar um soco no teclado se vai quando você se lembra que o centro da mesa onde o notebook está é de vidro. Pensa, então, em simplesmente arremessar o notebook na parede como faria um arremessador de peso, daqueles que giram uma bola de ferro em uma corrente e a soltam para cima. Mas, se lembra que você é um otário, e que se você fizer isso estará cometendo um grande erro. Então, com uma paciência gigantesca, tenta resolver o problema.

Depois de uma xícara de café frio e alguns minutos a mais, finalmente consegue com que o programa responda. A bendita tecla “c” está funcionando corretamente e o resto do teclado, aparentemente, também está (apesar de travar a cada dois minutos). Você já está na segunda xícara de café e se sente ainda pior por ser passado para trás por seu próprio notebook – que está contigo fielmente e muito bem cuidado por cerca de seis anos.

Estranhamente, apesar de muita coisa dar errado, você atende seus amigos com problemas de vaidade, problemas de criança, coisas tão simples e insignificantes (tipo o seu teclado), e lhes acolhe sendo o melhor amigo de todos os tempos, dando-lhes atenção, demonstrando carinho e preocupação com suas causas e conflitos. Você sem querer, mas, naturalmente, lhes dá conselhos e aponta para os caminhos mais corretos para seguirem. Faz com que a cabeça de todos eles se acalme e seus espíritos compreendam que o imediatismo não é um lugar para se tomar decisões importantes. Você é um derrotado e se pega dando lições de vida a pessoas que, aparentemente, estão um pouco ou muito melhores que você (financeiramente e tudo mais). Mesmo sem querer, obrigado por sua natureza conflitante, você acaba tentando ajudar pessoas que procuram em você um bom ouvinte, um com bom conselho ou apenas uns minutos de conversa para matar a saudade. Sua terceira xícara de café está no final, e sua vontade é de levantar da cadeira, tomar um banho – se é que o chuveiro não vai queimar de novo como ontem –, e fazer alguma coisa por si mesmo. Afinal, você é o único que parece estar ao seu lado para dar aquele empurrãozinho. Afinal, você é um derrotado, e mesmo assim é o único que pode fazer por si mesmo o que mais ninguém parece fazer: fazer sua vida valer a pena. Você quer ligar para pessoas, quer marcar reuniões, quer retomar as atividades e ganhar o respeito de quem realmente importa: de si mesmo. Afinal de contas, você é um derrotado, e mesmo assim, mesmo com as perspectivas diminuídas e as energias enfraquecidas, quer dar um soco em sua incapacidade e ver o que acontece. Mas, não quer apenas se sentar e assistir. Você é um derrotado que quer fazer parte de suas próprias mudanças, quer ser o protagonista de suas próprias transformações.

Enfim. Talvez todas as suas experiências até aqui tenham servido para compreender que você não está nem perto do fim. É um derrotado que ainda tem sangue quente correndo nas veias e oxigênio suficiente nos pulmões para continuar caminhando e desejando o topo da montanha mais alta, para, quem sabe, um dia olhar para baixo e dizer para si mesmo que você é um derrotado, mas, um derrotado que conseguiu chegar onde queria.

Marco Buzetto é professor e escritor, autor de livros, contos e artigos.