12/11/2015

Quarto 103 - Crônica 60


Dentro do quarto, suíte, um homem deitado na cama se senta à beirada e por alguns minutos reflete sobre a vida, seus passos até aqui e os próximos adiante. O tempo congela por fora, e em suas memórias a vida corre a uma velocidade absurda – anos se passam em milésimos de segundo, ações, discussões, prazeres e desprazeres que fazem parte da história de qualquer um de nós. Quarto pequeno, cama velha combinando com as cortinas e mobília empoeirada; uma cena completa em tons dégradé de sépia. Quarto fajuto alugado por um mês num hotel ainda mais fajuto. Baratas, ratos e traças nas paredes; proteína da melhor qualidade rastejando e se escondendo em cada canto do prédio. Calefação? Nenhuma. Até existe, ou existiu há dez anos, mas, hoje não funciona sequer o interruptor. O tempo ainda parece congelado, pelo frio e pelas lembranças do homem. E tem essa mulher deitada de lado – meio de lado e de barriga pra cima, com os braços largados e sangue seco escorrido por pequenos furos em suas veias. Heroína. Não é fácil... Mas enche o cérebro de prazer enquanto ainda está no sangue. Depois o fogo apaga a pessoa fica assim, largada, sem um pingo de energia. Pelo menos conseguiu dormir. Muitos ficam assustadoramente perigosos quando passa o efeito da droga.

Na cabeceira da cama um relógio antigo de ponteiros que não chega nunca às 15:25h; suas engrenagens forçam, mas os ponteiros não respondem. O ponteiro dos minutos tenta avançar com a maior força de vontade, mas volta como se esbarrasse em uma parede e fosse obrigado a continuar sempre no mesmo minuto. A representação do tempo sem reação, sem sair do lugar, sem poder fazer nada para ajudar a si mesmo, a não ser tentar e tentar repetidamente, em vão. Obstinado ao fracasso. Desgastado.

Um copo de sambuca romana pela metade aguado pelo gelo derretido nas horas passadas, ao lado da garrafa vazia. Sabor marcante de um licor que fica na boca e no estômago por horas, lembrado a cada arroto disfarçado. É como o gim, não dá pra esconder o cheiro; porém, mais elegante. Serviu para espantar o frio durante as duas noites anteriores, no lugar da calefação não operante. O clichê da navalha entreaberta ao lado do copo como quem aguardasse a hora certa para qualquer final infeliz. Som dos carros na rua, poucos, dois ou três por minuto, e o sussurro da chuva vagarosa batendo nas janelas.

Ainda sentado, o homem se abaixa, pega os sapatos de couro perto do criado mudo e uma lata de graxa preta com uma escova de dentes e um pedado de pano para dar brilho. Enquanto lustra o segundo sapato, esquerdo, a mulher na cama acorda um pouco atordoada pelo rebote da heroína. Olhos cheios de remela, saliva seca escorrida no canto da boca. Lúcida, mesmo assim. Iluminação fosca por dois abajures embutidos à parede acima da cama.

― Engraxando os sapatos, agora? 15:25h? Aonde vai a essa hora? – pergunta ela.
Ele desdenha com a sobrancelha, toma o pulso da mulher e checa as horas em seu relógio. ― São 3:33h da manhã – diz ele, retomando o lustre em seus sapatos.
― Droga. Dormi o dia todo de novo?! – sussurra ela. Aonde você vai, querido?
― Ao banheiro.
― E precisa engraxar os sapatos para ir ao banheiro?
― É que vou demorar um pouco lá dentro. – responde ele, ainda com desdém, dando com os ombros.
― Estou com fome. Vou descer e comprar alguma coisa. Quem sabe trazer uma bebida. Quer alguma coisa? – pergunta ela enquanto desliza para dentro de um vestido branco cintilante mais justo que uma virgem.
― Não, obrigado. Estou sem fome.
― Tudo bem, querido. Eu não demoro.


O que aconteceu noite passada, nas últimas três noites, na verdade, para ela não estava muito claro. E para tentar trazer um pouco de nitidez aos detalhes, mesmo quando não há importância, vamos dar um nome à mulher de vestido branco cintilante: Patrícia. Não que faça diferença, mas é esse o nome. Para ela a noite não ficara muito clara por conta das picadas de heroína. O pouco tempo em que estava (meio) lúcida servia apenas para comer o que estivesse ao alcance das mãos, ir ao banheiro, voltar para a cama e preparar outra dose numa colher de inox de sobremesa. Isqueiro com seu nome gravado, inclusive. Profissional. Não era fumante. Nunca pôs um cigarro na boca, fosse do que fosse. O isqueiro servia apenas para pesar na bolsa e esquentar a colher.

Os últimos trinta dias naquele quarto de hotel haviam sido mais ou menos parecidos. Um pouco de droga, um pouco de bebida... nada junkie; só um pouco de entretenimento saudável embebido em entorpecente. Ninguém entrava na quarto além dos dois. Casal? Possivelmente. Qualquer par de qualquer coisa hoje em dia é um casal. A verdade é que eles haviam se conhecido a cerca de quarenta dias. Nada antes. Nenhuma história entre os dois, nenhuma foto, nenhum fato. Apenas quarenta dias de companheirismo, prazeres e poucas palavras. Conheceram-se em um hospital. Ela, escapando de uma suposta overdose. Na verdade não foi, só pareceu. Estava com uma amiga em uma noite de filme, vinhos e sua heroína bem guardada no bolsinho interno da bolsa, perto do batom. Vinho branco seco acompanhado de algumas frutas da estação e uma torta de morangos e merengue. Classe, sempre. Patrícia foi ao banheiro e demorou a voltar. Sua amiga, preocupada, chamou algumas vezes antes de pegar a chave reserva, abrir a porta, vê-la caída no chão perto da pia, ligar para a emergência e chorar copiosamente. Finalmente a ambulância chega. Patrícia, acordada. Aparentemente nada aconteceu. Só um desmaio. Apagou e voltou... como as luzes de casa em noite de tempestade. Mesmo assim, sua amiga, ainda muito preocupada, pediu aos paramédicos que a levassem para alguns exames. Não contou a eles sobre a seringa encontrada sob o corpo de Patrícia e escondida dentro do armarinho. Quis manter a integridade da casa, da amizade. Não contou a ninguém. Até por que poderia – em seu inocente ponto de vista – ter sido a primeira tentativa de Patrícia em se drogar, já que a seringa ao menos havia esvaziado. Pensou: “talvez ela tenha tentado e desmaiou pelo nervosismo”. Pois é, acontece.

Um pouco chocada para acompanhar Patrícia, sua amiga preferiu beber o último gole da segunda garrafa de vinho e continuar chorando antes de pegar no sono ainda no sofá. No hospital, enquanto aguardava o resultado de seus exames já na sala de espera, ainda mais fraca pela coleta de sangue somada aos acontecimentos e abusos da noite, Patrícia se pega observando um homem deitado em uma fileira de cadeiras, aquelas com os encostos azuis ou pretos, muito desconfortavelmente, diga-se de passagem. Ele parece dopado, mas, de olhos abertos. Antebraço direito enfaixado.

Dois dias antes. Hospital:
Uma enfermeira aos berros pedindo ajuda. Um homem com as roupas ensanguentadas, quase desmaiado, sendo empurrado em uma cadeira de rodas porta adentro. Parece que ninguém sabe dizer o que houve. Apenas sangue, um homem cambaleante e paramédicos.
―Alguém ajude, rápido! – gritava a enfermeira.

Ela não trabalhava neste hospital. Na verdade, passava por uma esquina quando vira o homem deitado no meio da rua enquanto tentava rolar para perto do meio fio. Ela ia para casa no momento, depois de trinta e duas horas de plantão num hospital do outro lado da cidade. Nem o hospital, nem o nome da enfermeira vêm ao caso. Mas, fora por acaso que ela deu de cara com o homem no meio da rua, com o pulso direito cortado, ensopado em seu próprio sangue, sem fala, sem reação.

― Quem é você? Você trabalha aqui? Hã, trabalha aqui? O que aconteceu? – indagava um médico que ouvira os gritos de suplício enquanto tentava entender e atender o paciente.
― Não sei. Parece um corte no pulso... ele está perdendo muito sangue.
― Onde ele estava? Você o conhece?
― Não... Não sei quem é. – respondia ela. Ele estava na rua... Eu não sei quem é...

Pobre mulher. Homem de sorte.
Mas, não era um simples corte no pulso direito. Corte horizontal.

― Outro suicida... – dizia o médico. Essa cidade está cheia de gente sem amor à vida.

Mas o caso não era bem esse. Realmente, gente sem amor à vida há por todo lado. Talvez as pessoas já estivessem de saco cheio, não tivessem mais o que viver. Cidades pequenas, cidades grandes, mundo pequeno, pessoas por todas as partes... enfim. Tudo pode ser feito em pouco tempo, desde que suas expectativas também sejam poucas.

Dois dias depois. Ainda no hospital:
― A vida não é aquela maravilha, não é? – brincou Patrícia, dirigindo a palavra ao homem deitado na fileira de cadeiras.
― De qual vida estamos falando, sua ou minha?
― Estou falando desse braço enfaixado. – respondeu ela. Uma vez também me queimei: água fervendo. Me distraí por um minuto ao telefone e dei com o braço no canecão de água fervendo para o chá. Reconheço um curativo de queimadura quando vejo um.
Neste dia se encontraram. Patrícia pelo puro carisma e ele, bom, ele devia ter seus motivos.

Muitas coisas boas acontecem durante a vida. Mas, muitas coisas estranhas também acontecem de vez em quando, principalmente quando se está ao lado de ma pessoa por muito tempo. A vida é uma grande e constante dúvida. Várias dúvidas, na verdade, sobre tudo, sobre vários assuntos e momentos. E pode ter a certeza de que não existe sinceridade duradoura, não existe alma que possa dizer com veemência que sua vida ao lado de outrem tenha possuído apenas verdades. Pode ter sido baseada em sinceridade. Mas, o que serve de base nem sempre é o que se realiza.

As pessoas mudam, e com elas mudam suas convicções, suas verdades e coerências. O que é sinceridade e crença hoje, amanhã será apenas um amontoado de pregos em serem martelados em nossa mente. Tudo será empurrado até o leito de morte, para ser desmistificado, se der tempo, antes que fechemos os olhos. E falando em dúvidas, verdades e morte, vamos voltar ao que interessa.

De volta ao apartamento: quarto com iluminação fosca e sem calefação.
O homem já havia terminado de engraxar os sapatos, claro, tanta enrolação pra chegar até aqui. Mas, a precariedade do quarto ainda era a mesma – um rato a mais correndo pelo chão do que seria uma cozinha muito pequena, mas do resto, tudo igual.

― Oi querido, estou de volta. Trouxe um pouco de espaguete, alho e azeite; parece muito bom. Caminhei um pouco até o Gusto’s, mas valeu a pena. A comida de lá é sempre excelente, cheia de sabor.

No banheiro, o homem fazia a barba com aquela velha navalha. Trocou de roupa, se vestiu com uma bela camisa branca de botões perolados e abotoaduras; calça social preta e suspensórios. Muita classe para comer um simples espaguete ao alho e azeite.

― Fazendo a barba, querido? Aonde vai todo elegante assim?
― Não muito longe. – respondeu ele, passando a navalha suavemente no pescoço, puxando a pele para baixo para deixar o barbear mais seguro e eficaz.

Não sorriu, não engoliu seco. Apenas continuou se barbeando e observando seu olhar no espelho. Sobravam apenas alguns pelos bem pequenos próximos ao queixo, que foram removidos sem muito transtorno. Barba feita com navalha sem nenhum corte ou arranhão. Coisa de profissional. Um pouco de loção para sentir a ardência e perfumar a pele, e pronto. Tudo certo.

― Você vai adorar o macarrão, querido. Pedi para capricharem no alho... sei que você gosta.
Os dois comeram na cama. Ele, encostado na cabeceira, ela, encostada sobre ele. Uma excelente refeição à tarde, nem almoço, nem jantar. Apenas comendo quando se tem fome. Vinho branco e uma fatia de torta de limão para acompanhar e fechar o estômago.

Depois da refeição os dois continuaram na cama, encostados, abraçados. Passaram bons minutos assim, ela de olhos fechados aproveitando o momento, ele, olhando para o nada, fazendo carinho na cabeça de Patrícia.

― Querida, preciso ir ao banheiro. – dizia ele. E quero que você faça uma coisa por mim enquanto isso. Depois que eu entrar, quero que você saia do quarto e desça até a recepção. Não volte, não olhe para trás, não importa o que aconteça. Você ouvirá um barulho alto, seco, meio abafado e sem eco. Não volte para o quarto. Apenas desça as escadas e, chegando à recepção, peça para fecharem a conta do quarto. Já está tudo pago; apenas faça o check out. O recepcionista lhe dará uma mala e chamará um taxi pra você.

Ela balança a cabeça suavemente, concordando com o pedido e as instruções. Mas, não faz o combinado de imediato. Sentiu saudades. Passou uma das mãos pelo rosto recém-barbeado de seu companheiro, fez carinho em seu peito, desceu para a barriga e um pouco mais abaixo. Se reclinou para frente – ele ainda encostado à cabeceira – deitou a cabeça em sua barriga, abriu sua calça e beijou por alguns segundos seu sexo, com vontade, com saudade. Levantou-se, ergueu um pouco seu vestido cintilante, sem calcinha, e se acomodou sentada em seu companheiro. Fizeram amor – ela controlando a situação, tomando conta de cada centímetro de seu corpo, controlando a velocidade e pressão. Um orgasmo, dois... três. Nunca fez apenas uma vez. Sempre que faziam amor, um só orgasmo nunca seria o comum. Ele, aos abraços, beijos e arranhões com Patrícia, respira com força, com pausas, e faz dentro de Patrícia com toda a vontade do mundo. Ela se levanta, arruma o vestido, limpa com a boca o que sobrou de esperma sobre o pênis enquanto ele sorri, feliz. Patrícia dá seu último beijo na boca dele, sorrindo, apaixonada, e sai do quarto.


Caminhando devagar, Patrícia não olha para trás. Corredor estreito, longo. Quando chega ao fim, antes de descer as escadas, ouve um barulho abafado, seco. Ela sorri, sem lágrimas – apenas um pouco de umidade nos olhos. A mala já estava encima do balcão e o taxi aguardando do lado de fora. Na calçada, Patrícia olha para cima, para a janela do quarto 103 no terceiro andar. Nenhuma palavra. Outro sorriso, um suspiro alegre, e vai embora.