Em noites
conturbadas costumamos dormir muito mal, implorando para pegar no sono e dormir
o máximo possível e acordar só no outro dia, quando a luz do sol estiver tão
quente e incomodando tanto que é praticamente impossível ficar na cama por mais
meia hora. Clima estranho, dia quente, noite fria, madrugada úmida que torna o
tempo um detalhe que não passa, estático – o tempo, arrependido, que deveria
passar voando, do por do sol ao despertar do corpo com o cheiro perfumado do
café fresco da manhã.
Barulho de
solados de couro no assoalho – e esses tacos de maneira que nunca me atrevi a
trocar; estranhamente, por sinal: a casa nem minha é. Os passos ficam cada vez
mais rápidos, largos e pesados, como numa corrida, começando com um trote
vagaroso. No corredor do lado de fora da casa, olho por cima do muro, um muro
baixo de coloração amarelada, velha. Pulsação aumentando – é estranho, pois,
não dá pra saber ao certo o que está acontecendo, por que o medo, quem está
vindo. Uma silhueta se aproximando, correndo com um objeto em uma das mãos –
parece um machado ou coisa assim. Me abaixo rápido, respiração ofegante, me
pergunto o que está acontecendo, olhando fixo para a parede. Os números da casa
presos à parede, ao lado da caixa de fusíveis, começam a falar comigo. Não sei
quais sãos os números. Não foi isso que me chamou a atenção. Números decorados,
coisa velha de bom gosto, em bronze, talvez. Tem cor de bronze. Dois números:
um em forma de bailarina, com os braços arqueados e as cumpridas pernas
alinhadas apontando para baixo; o outro, um relógio estilo cuco de parede, de
tamanho proporcional à bailarina. Ela à esquerda, o relógio à direita. Os
números da casa no centro de cada um. Não vejo os números, pois, presto atenção
na fala dos objetos. Eles dizem para eu correr, sair do corredor o mais rápido
possível.
Novamente o
barulho dos sapatos batendo contra a madeira do chão no andar de cima.
Estranho. Os passos se aproximam, mas eu não vejo nada. Só o apavoramento
eminente causado pela sensação do desconhecido. Ouço gente gritando. Olho para
o lado e uma mulher vestindo um tutu velho em tons de bege, rasgado. Ela parece
mais assustada do que eu. Estou assustado pela situação. Ela, por parecer saber exatamente o que está acontecendo. Está imóvel. O barulho não vem dos pés dela.
Pela janela, uma atmosfera cinzenta carregada de nuvens. Meu coração dispara. A
mulher aperta qualquer coisa em sua mão e chora copiosamente – talvez um lenço.
Uma criança se escondendo atrás da cama, olhando teimosamente por cima do
colchão, soluçando enquanto tenta não fazer barulho.
Gritos! Gritos
cada vez mais altos. Silêncio, como acontece quando os pássaros param de voar
pressentindo a chuva. O som dos soluços bem baixos da criança e da mulher – não
é sua mãe; não sei quem são. Olho no espelho de parede, do meu tamanho, e estou
vestido tão diferente da realidade quanto os dois no quarto comigo.
A mulher olha para mim desesperadamente, respira cada vez mais rápido, rápido, mais rápido... quase a ponto de um colapso. De repente, um grito desesperado e amedrontador brada de seus pulmões, espremendo aquele lenço de algodão entre as mãos. Outro grito do lado de fora do quarto e o som de madeira quebrando. Foi a porta se rompendo. Seja lá quem for do lado de fora, está usando uma serra giratória, não um machado. Aquele barulho ensurdecedor da serra girando e triturando a madeira... Não se parece com uma serra elétrica moderna, é algo mais arcaico, mas, vivo, como se estivesse possuído. A porta vai ao chão e essa figura macabra entra aos berros erguendo a serra sobre sua cabeça. De alguma maneira tenho um objeto também em minhas mãos. Não faço a menor ideia do que seja ou como consegui, mas, está lá. A mulher e a criança correm para outro cômodo. Morrendo de medo, desfiro um golpe em sua arma e a serra parte, caindo no chão apenas a lâmina que, misteriosamente, não para de girar, como se estivesse encantada. Piso para tentar pará-la, mas é impossível. O “homem” parece não saber ao certo o que aconteceu. Olha para suas mãos, apenas um pedaço de maneira e a lâmina no chão. Confuso, não me ataca, e tenta parar a lâmina giratória com o pé esquerdo, imitando minhas tentativas. Por que não me ataca? Percebo que é hora de correr o mais rápido possível...
No outro cômodo, olho pela porta, petrificado. Estou transando com aquela mulher de maneira violenta, mas, sem agressões. Tanto ela quanto eu nos tratamos como meros objetos sexuais, como bonecas de pano, talvez, andando em passos largos pelo quarto enquanto penetramos um ao outro. Gemidos altos, incômodos, e aqueles movimentos bizarros e animalescos em um ritual de sexo macabro. Continuo olhando, ainda à porta, com uma vertigem tão violenta e pesada quanto aquela cena. Seguro a mulher em meu colo, abraçada ao meu corpo, em pé, ainda transando impetuosamente. Ela me aperta o pescoço como se tentasse me estrangular. Faço o mesmo, mas, sem nenhuma intenção de matá-la. Sua cabeça se solta do pescoço como uma peça de quebra-cabeça e cai sobre a cama pedindo mais. Não está satisfeita. Fica me olhando enquanto transo com seu corpo ainda em pé. Mesmo com nojo, continuo olhando pela porta. Quando percebo, não sou eu transando em pé com o corpo ainda em movimento da mulher decepada, e sim, a criança, o menino. A figura do eu está também em pé, na beirada da cama, fazendo sexo oral com a cabeça da mulher, enquanto esta pede mais. É uma das situações mais inacreditavelmente medonhas que já presenciei. Ouço gritos de medo e os passos que voltam a rondar meus ouvidos. Olho para o corredor, com medo; olho novamente para aquela orgia asquerosa, sinto vertigem, meu labirinto brincando com minha cabeça... Vomito ali mesmo, ainda em pé, entre o quarto e o corredor. Saio correndo desordenadamente, vomitando ainda mais ao mesmo tempo.
Do lado de fora
da casa, estou correndo, procurando o portão de ferro de grades altas que
imagino ter visto em algum momento. Talvez tenha confundido com as grades da
cabeceira da cama. Podem ser parecidas. Não tenho certeza.
As figuras da mulher e da criança reaparecem. Correm ao meu lado, mas, mantendo distância, como se fugissem da casa e de mim ao mesmo tempo. Tento me aproximar para protegê-los, mas eles se distanciam. Olham amedrontados pra mim e para trás, como se algo continuasse seguindo os dois. A casa, ao longe, desaba em chamas. Não sei em que momento entre nossa saída e a corrida até três ou quatro quarteirões adiante ela resolveu incendiar, mas o fez. Além do fogo com chamas altíssimas iluminando todas as outras casas ao redor, gargalhadas doentias tomam de assalto o som da madeira e vidros estalando com o fogo. Outro som inusitado que tira a concentração é um choro desconsolado, triste, que também parece vir da casa, como se esta lamentasse minha saída de dentro dela, impedindo-me de ser consumido pelo calor. A casa parece triste, pois, não virarei pó junto de seus móveis e estruturas.
Cambaleante, o homem que nos perseguia surge próximo, se apoiando em paredes de tijolos a vista, tentando respirar tão incomodadamente quanto eu. Seus olhos estão vidrados em mim, assim como os meus em sua figura. Ele respira com dificuldade, assim como eu, com a boca entreaberta e engolindo seco. Precisamos de um pouco d’água, com a urgência de um moribundo. Mas, apesar do clima denso e do céu cinzento iluminado pelas flamas da casa, nenhuma gota de chuva parece se aproximar.
Continuo olhando petrificado. Meu corpo não se move, traindo minhas vontades de sobrevivência. Quero correr como o vento, mas não consigo. Tento gritar, mas minha voz é abafada por sabe-se lá o que. As figuras da mulher e da criança olham para mim sem a menor intenção de quererem me ajudar. Parecem apreciar o momento, mesmo com suas fisionomias assustadas. É quando percebo o “homem” muito próximo a mim, com a distância de um braço. Ele estica a mão direita. Vejo toda sua pele chamuscada pelo fogo da casa que ainda emite gargalhadas e lamentos. Pele derretida. Cheiro de cabelo queimado e pele tostada. Mas ele não me olha com raiva, com vontade de matar ou desejando vingança. Seu olhar é de pena e compreensão, como quem dissesse “vai ficar tudo bem”. Sua mão toca meu rosto, e quando isso acontece, vejo seus dedos desmanchando-se em pó, apodrecendo numa velocidade extasiante. O braço se vai, depois o ombro e todo o corpo se desmancham em uma fuligem esbranquiçada diante dos meus olhos. Enquanto isso, a sensação de ouvir aquelas palavras – “vai ficar tudo bem” – volta em minha mente. Consigo me mover novamente. Tento retomar o fôlego; procuro as figuras da mulher e da criança ao meu redor, mas, nada vejo. Inclusive, não vejo absolutamente nada, como se estivesse preso em um nada totalmente no escuro.
Percebo, então, que aquelas palavras não estão ecoando apenas em minha mente. Não estão vindo de dentro de mim, e sim, ouço-as nitidamente na medida em que a escuridão se torna cada vez mais escura. Sinto a escuridão cada vez mais escura, sem nenhum resíduo de luz, sem nenhuma expectativa. Esta voz gutural parece vir em minha direção, sempre dizendo “vai ficar tudo bem”, mas, em um tom que me mete medo e faz minha espinha gelar. O som desta voz monstruosa está sobre minha cabeça, e ao tempo em que é proferida cria um deslocamento de massa de ar que me joga para frente, como se quisesse que eu andasse para frente. Então, para não me voltar contra mais este susto, caminho para “frente”, mesmo sem enxergar a ponta do meu próprio nariz, tamanha a escuridão.
Caminho tanto que minhas pernas doem, meus pés parecem sangrar, já sem nenhum calçado. Pareço caminhar a meses, e sempre que paro para retomar o fôlego, aquela voz profere suas palavras novamente.
Um feixe de luz, talvez um reflexo, se mostra muito ao longe. Continuo andando, às vezes correndo em direção àquilo que parece ser uma miragem. Apenas um feixe de luz, mas, que dá norte aos meus passos. Quando me aproximo, finalmente, meus olhos voltam a enxergar o cenário em sua totalidade. Um abismo em minha frente. Nada ao redor. Apenas o abismo. Nada para trás ou para cima, nada de lado algum. Apenas este pedaço de montanha e o abismo abaixo de mim. Sensação aterradora.
A voz continua,
guturalmente, insistindo que ficará tudo bem, seja lá quando ou como. E quando
faz isso, a massa de ar vem agora de dentro do abismo, como se me empurrasse
para fora. Mas, atrás de mim, apenas a escuridão. Não há nada. O abismo e a
escuridão são minhas realidades agora. Quando me aproximo novamente, mais uma vez
a voz brada, me empurrando um passo a mais para trás. Não quero voltar para a
escuridão, mas a voz insiste que aquele é meu lugar: a escuridão.
Minha pulsação
força o sangue contra as paredes de minhas veias, aliada a uma respiração tão
fora do ritmo que assustaria qualquer um. Preciso fazer alguma coisa o mais
rápido possível. Não quero a escuridão, tampouco o abismo. Corro para trás,
como disse a voz tendenciosa. O vento diminui quase se extinguindo. Retomo o
fôlego amedrontado... Corro desesperadamente e salto para dentro do abismo como
se fosse uma pedra tão pesada quanto o mundo. Vejo dentes e língua. O vento
quase me ensurdece e está tão rápido a ponto de rasgar minha pele. Ouço a voz
gritando que não quer me engolir e que meu lugar é a escuridão, não o abismo.
Quanto mais fundo me encontro no abismo, ainda caindo, sinto que aquela é minha
própria voz, que agora se torna mais nítida e compreensível.
Ouço miados.
Um feixe de luz pela cortina.
10 de
agosto de 2015.
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