Um dos fatos da vida, daquele tipo que não se consegue passar batido, que
não se consegue fazer de conta que não é verdade... Quando se deita na cama,
com a cabeça no travesseiro, e tudo o que se tem na mente volta como uma
tormenta; passa diante dos olhos como um longametragem dantesco.
― Passo o dia todo tentando esquecer, mas quando chego em casa, quando me
deito na cama, aquela voz de não se sabe onde vem me torturar. Parece vir das
paredes, do teto, do chuveiro quando estou no banho. Parece vir da água que
desce pelo encanamento velho chovendo em minha cabeça, correndo por meus
ouvidos e gritando sentimentos confusos. Voltar para casa é lamentar a verdade
que só existe aqui dentro. Vozes que me perseguem ao som de uma marcha fúnebre,
ou um contínuo rítmico de caixa de bateria, sabe, no melhor estilo Sunday
Bloody Sunday. Insônia, claro. Pesadelo. Delírio noturno irremediável. Há anos
me sinto assim. Muitos já teriam passado o laço ao redor do pescoço. Mas eu,
não. Eu não... Ainda não, eu acho. Mas é mesmo perturbador. Vozes que me acordam
durante os poucos minutos que consigo pegar no sono. Há anos nunca durmo de
verdade, uma noite inteira, seis, sete horas. São sempre fragmentos, cochilos
relâmpagos. Não dá pra nada. Não dá tempo nem de lubrificar os olhos. Levanto
quebrado em todas as manhãs. Ainda sinto um leve cheiro de corpo na minha cama.
Cheiro de prazer, de sexo. Cheiro de lágrimas, de suor. Cheiro de exaustão. E
logo em seguida sinto o cheiro do quarto vazio. De dezenas intermináveis de
tantas pessoas que já passaram por aqui, e deixaram suas marcas, seus odores,
seus arranhões, mordidas, deixaram seu sangue em meus lençóis. Agora, quando
ponho a cabeça no travesseiro, lá estão as lembranças. Memórias profundas de
paixões, alegrias e lamentações que me perseguem. Memórias de um travesseiro,
um confessionário em forma de cama. Memórias no colchão, nas paredes, nos
móveis. Quando inspiro fundo, suavemente, posso sentir o cheiro do corpo de
cada uma delas. Está tudo registrado neste saco de plumas de ganso. Plumas
fajutas. Saco de plumas condenado. Saco de plumas que me condena. Há tantos
fios de cabelo na minha cama... Já não sei quais são meus. Cabelos de todas as
cores, todos os tamanhos. Fios tão longos quanto às cicatrizes que deixaram e
minhas costas, no meu peito. Alguns tão curtos quanto o sorriso tímido das
mulheres mais lindas. Fios tão claros quanto minhas noites de insônia, e tão
escuros quanto meus dias de solidão. Volto para casa, com a vontade de não
voltar. Por que você não cala a boca, maldito? Por que ainda insisto em descansar
minha cabeça em você? Porque ainda não te joguei no lixo, ou te incinerei junto
dos lençóis e roupas tão marcados quanto você? A sensação que tenho quando me
deito com a cabeça no travesseiro, é como se centenas de mãos e pernas me
prendessem à cama, como correntes tão quentes quanto o fogo. Algumas tão frias
quanto o passado. Uma sensação de mãos segurando minha cabeça, tapando minha
boca enquanto me puxam para baixo sem me deixar gritar socorro. Sem me deixarem
chamar seus nomes. O travesseiro me julga. O passado me julga. Os nomes em
minha mente e as lembranças sustentam minha insônia. Sustentam minha
demência... A abundância de insanidade por trás dos meus olhos. Minhas noites
parecem com o velho blues lamentoso, decadente, que marca o ritmo com a batida
dos sapatos feitos de sola de pneu rasgado. Sabe como é mister Jones. A
diferença é que eu sei exatamente o que é.

― Sabe mesmo? Acho que não. Se soubesse, não me ouviria mais, imprestável. Se soubesse, já teria me calado? Já não teria me jogado fora e me trocado por outro mais novo... virgem? Já não teria me trocado por outro útero vazio para encher de novas bobagens? Não me agrada ser um depósito de lixo mental, humano... Um contêiner de excremento em forma de lembrança desta centena de corpos que metem a cabeça sobre meu corpo. Quando suas cabeças, não é mesmo?! Vez ou outra eu sirvo de apoio para deitarem à coluna lombar enquanto você dá a elas algumas horas de prazer oral. Meu corpo ensopado com o prazer de cada uma. Se suas lembranças são ruins, imagine as minhas. Cometeria suicídio se eu pudesse. Enquanto isso, só me resta te lembrar a quantidade de desolação que existe entre estas paredes. Romântico demais? Lembranças demais em poucas horas para uma vida toda. Se acha que suas memórias são pesadas, imagine a consciência de todos os travesseiros de todas as mulheres que já deitaram suas cabeças e seus corpos sobre o meu. Cada fio de cabeço que você não reconhece espalhados pelo quarto, cada arranhão em suas costas e peito, cada mordida em seus lábios... Tudo não passa de horas a mais de insônia por conta das lembranças. E não adianta mudar os móveis de lugar, virar o colchão ao contrário, pintar as paredes, lavar todas as roupas de cama ou rezar a missa negra. Tudo continuará do mesmo jeito. Sempre que fechar seus olhos, dezenas de outras vozes e memórias estarão por aqui, rondando sua cabeça, remoendo o passado em busca de respostas para as perguntas às quais você ainda não fez. Enquanto isso, eu enxugo as lágrimas de prazer e os orgasmos derramados em minhas plumas, enquanto me preparo para calar sua boca durante a noite, de novo e de novo, e trazer de volta as centenas de mãos e penas que te puxam para baixo enquanto você grita com a voz abafada.
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18 de Setembro de 2013.
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