24/02/2019

A passividade e a oposição espectadora


Existe uma dimensão imaginária, ou seja, uma falsa sensação que paira em nosso imaginário (brasileiro), de que, por muito tempo, estivemos no controle da situação – enquanto povo, enquanto nação, do individual para o coletivo. Essa falsa sensação não é uma questão apenas de terras tupiniquins em tempos de presidencialismo. Porém, como este não é um artigo geral, o foco é somente a realidade de um Brasil que se transforma. Lembrando, claro, que o Brasil, se comparado com grandes civilizações e sociedades mais antigas, é um país embrionário: como democracia “plena” muito recente, desde 1988 após o fim dos 21 anos de ditadura militar (1964-1985) e um passado conturbado de trocas de oligarquias, governo provisório, conflitos internos manipulados, influências políticas externas, democracia duvidosa etc. E mesmo que as noções de democracia possam variar, pois sempre existem comparativos históricos sobre o passado próximo e o presente, o sentido de democracia, em sua totalidade e essência grega, permite, de forma legítima, a ascensão ao Governo até mesmo daquilo o que existe de pior na sociedade, pois é de seu direito democrático de elegibilidade. Mas, como o foco deste texto também não é exatamente a democracia em si, vamos ao que interessa a mim esboçar.

Antes de mais nada, deixo claro minha visão geral, e não partidária sobre o que se segue neste texto livre; pois, antes de qualquer coisa, a cidadania me habilita, e não minhas crenças pessoais, justamente por vislumbrar a sociedade como um todo dotada de individualidades das mais variadas, que, desde que não agridam a outrem, devem ser, também, respeitadas. Entretanto, confesso que sinto certo constrangimento em ter que explanar sobre minha posição neste texto. Contudo, em tempos de maniqueísmos dos mais variados e incompreensões e contestações programadas, para evitar taxações (que quase nunca são evitadas), nos vemos obrigados a explicar até mesmo as explicações.


Conversando com colegas professores, entre outros profissionais e demais conhecidos e amigos, e tentando ao máximo compreender muito do que está acontecendo no Brasil após as eleições presidenciais de 2018 e durante este início de Governo, busco compreender uma parte considerável – e não pequena – da sociedade: a oposição. Minha análise (ainda que parcial e inicial neste texto) não possui um foco restrito sobre o que entendemos como participação política, mas sim, compreendendo o exercício político da cidadania independentemente de convicções particulares; e o ponto, aqui, não é “quem votou em quem”, e sim, a coexistência de todos dentro deste cenário. Entretanto, cabe uma crítica: as oposições não estão organizadas, sejam elas de esquerda, direita, centro e suas subdivisões e vertentes.

Na história recente, vimos governos caindo por muito menos se comparados a tudo o que vem acontecendo nestes primeiros meses do governo atual. Não precisando adentrar muito na História do Brasil: tivemos o caso Collor e seu impeachment, e mais recentemente, o da presidente Dilma Rousseff e a prisão do ex-presidente Lula e sua segunda condenação. Não entrarei no mérito individual de cada caso, sendo legítimos ou não, comprovados ou não. Contudo, em ambos existiram fatores que deram início às revoltas populares e pressão pública às ações políticas que se seguiriam – mesmo que de forma manipulada, pois, de qualquer maneira, existia, até então, uma concepção de “oposição” àqueles governos, que se manifestava na medida do possível. O que me faz levantar a questão: E hoje, onde estão as oposições? Transformamos a nós mesmos, espontaneamente, em uma oposição espectadora que se satisfaz em reclamar dando risada e dizendo “eu avisei”? Demos início a um governo racista, xenofóbico, sexista, misógino e carregado de violência e discursos de ódio inconstitucionais, para não citar os casos de corrupção que já existiam antes da ascensão presidencial e se instalaram com mais força. Porém, após todo o processo eleitoral, já nas primeiras semanas, demos de cara com o escancaramento de eventos que traziam à tona inúmeros casos de corrupção dentro do próprio Governo eleito envolvendo o presidente, sua família e correligionários. Movimentações financeiras não explicadas, candidaturas laranjas, desvio de dinheiro e corrupção comprovada do fundo partidário no PSL (Partido Social Liberal) que elegeu o atual presidente; sem levantar as investigações, independentes e declaradas, de envolvimento da família presidencial com milícias no Rio de Janeiro e o assassinato da vereadora Marielle Franco (por milicianos enaltecidos pela família (até então não) presidencial).

Porém, a questão aqui é a sociedade. As pessoas. Os eleitores e não eleitores, o povo de maneira geral, ultra partidários ou não. Eleitores, principalmente, das camadas sociais mais afetadas pelas atitudes desumanas e retrógradas deste Governo. Todos nós, e já me incluo neste todo para não sofrer represálias patéticas, todos nós vivemos em um período que vinha se construindo durante anos. Nos tornamos espectadores de tudo, incapazes de contestar, e quando o fazemos, somos incapazes de agir. Claro, houve momentos em que parte de nós tomou posições pelo povo, como nas manifestações iniciadas em 2012/2013 por conta dos aumentos de passagens na capital paulista. Mas, de lá para cá, pouco se fez no contexto geral. Sem contestar as informações e fontes que nos eram apresentadas, aceitamos grande parte das manipulações de gurus autoproclamados sem nenhuma bagagem confiável. Viramos uma sociedade espectadora, principalmente pela graça e o infantil bom humor que vemos em tudo. Com o teatro, o espectador não possuía controle do que estava acontecendo diante de seus olhos, “obrigado” a apenas receber o conteúdo e fazer suas próprias análises – fossem elas necessárias ou não. Com a televisão, a mesma coisa, antes que viesse o bombardeio de canais e informações de fontes diversificadas: e as pessoas passam a ter “controle” daquilo o que queriam ver, refletindo, ou não, sobre seu conteúdo. Deixamos, parcialmente, de ser meros espectadores e passamos a escolher aquilo o que mais nos agradava em matéria de consumo de informação, de qualidade ou não, reflexivas ou não. Com a Internet, porém, nos tornamos (novamente) ainda mais passivos, ainda mais do que durante os espetáculos de teatro e programas de TV que nos davam falsas sensações de liberdade. Passamos de meros espectadores passivos para uma sociedade espectadora, ainda mais passiva, porém, desta vez, por conta do “bom humor”.

Com o Governo atual, tudo o que fazemos é esperar pelo próximo meme, a próxima gafe, o próximo erro de vocabulário de um presidente incapaz ou de seus ministros controversos que mentem sobre seus currículos; e quase que instantaneamente damos risadas de todo este grande picadeiro que as redes sociais se tornou e ao mesmo tempo se nos oferece – mas num sentido pior: tornado por nós mesmos, perdendo todos os sentidos, significados e importâncias de quaisquer assuntos. Pois, as informações não são (apenas) mais aquelas ofertadas, mas sim, agora, produzidas por nós mesmos. E ao invés de contestar, rimos e mantemos nossa passividade. Não nos opomos, nem contra ações desumanas de políticos, Governos e influenciadores digitais que vomitam ignorância, nem mesmo contra nossas próprias práticas de não-contestação. Queremos apenas rir, e, no máximo, dizer “eu avisei”.

O que ninguém avisou, é que o tempo do “eu avisei” já passou, e passou de uma forma tão acelerada, que não nos permitiu sequer expressar essa afirmativa; pois realmente não dá tempo de fazê-lo. O “eu avisei” terá de ficar para uma próxima, pois a coisa toda já aconteceu e todos nós estamos vendo e vivendo, dia após dia, as mazelas impostas à sociedade. É hora, então, de deixamos a passividade espectadora para trás. É hora de deixarmos para trás o “eu avisei”. É hora de assumirmos uma posição opositora e educarmos, mesmo que da maneira mais pedagógica e paciente possível, quase que pegando pela mão o indivíduo, e ensinarmos a ele qual sua relação com o todo e como suas atitudes refletem em toda a sociedade da qual ele próprio faz parte e da qual não se tem escapatória, pois o “cada um por si” não se aplica mais desde que os seres humanos resolveram criar as civilizações mais antigas. É hora de nos educarmos. É hora de pararmos de rir e começarmos a nos opor. Oposição aos interesses de elites internas e externas que querem, simplesmente, o benefício e sobrevivência deles próprios e a exploração homicida da sociedade.

Volto, então, a questionar: Onde estão as oposições? Pois, aprendemos a rir, aprendemos a achar graça de tudo; e isso demonstra apenas a única capacidade real que desenvolvemos nestas quase duas décadas do novo século: a capacidade de jogar a toalha, abandonar o barco e dizer “desisto”, desistindo de nós mesmos e da luta pelos direitos das pessoas mais próximas às mais distantes. Desistir é também parte do egoísmo que nos impede de agir pelo bem de todos, pois somos também este todo. Precisamos, com urgência, deixar de ser esta sociedade espectadora que assiste ao espetáculo como um grande reality show político à espera da próxima polêmica para comentarmos. É necessário agir, tomar uma posição, pois a oposição perde a cada dia em que não contesta e não age, e esta perda política, não somente partidária, pavimenta e solidifica a derrota para todos nós; e por “nós”, não considere apenas você e eu. Não. Considere também seus pais, seus filhos e filhos destes. Considere todos os que lutaram para tornar sua existência possível, seus direitos e liberdades. Considere todas as pessoas que você ama, por quem você tem o mínimo de estima ou simplesmente por seus iguais. Mas não se exclua do problema e nem da solução.

Precisamos nos reorganizar enquanto indivíduos, enquanto cidadãos, enquanto sociedade. Precisamos nos organizar enquanto oposição daquilo o que nos prejudica, assumindo posições, tomando partido pelo ser humano, pela sociedade, pelo futuro que está logo ali, deixando o egoísmo apenas para àquilo o que é de nossa intimidade; mas precisamos compreender a totalidade. As oposições precisam se reorganizar. A sociedade do espetáculo precisa agir e aplaudir apenas nossas vitórias, repudiando o que nos maltrata. Precisamos nos reorganizar e nos opor.



24 de fevereiro de 2019
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