Verecundia:
Cinco Textos em Oposição à Violência Contra as Mulheres.
Texto 4
Resumo

Aqui, o relato de uma mulher que não se esquece.
Não faz muito
tempo. Na verdade, para mim parece que foi ontem. Todos os dias são parecidos
com aquele dia. Sempre que fecho os olhos enxergo a mesma cena, sem
escapatória; ouço meus gritos, meus gemidos altos de dor. Vejo em terceira
pessoa, fora do meu corpo, meu próprio sofrimento.
Saí de casa
naquela terça-feira a tarde, como sempre fazia. Era de costume eu caminhar no
final da tarde. Sempre as terças e quintas-feiras, e também aos sábados e
domingo pela manhã. Uma horinha de caminhada era o bastante. Quando estava
inspirada, duas horas sem intervalo. Nada que uma boa música no fone de ouvido
e uma garrafinha de suco de laranja não resolvessem. Meu kit de caminhada.
Às
terças-feiras, eu caminhava sozinha. Minhas amigas não podiam ir comigo, pois
tinham outros compromissos neste dia. Era rotina, no mínimo há dois anos, se
bem me lembro, sem pecar sequer um dia.
Em uma destas
terças-feiras, fui pega desprevenida por uma pessoa que pedalava rápido ao meu encontro
de bicicleta. Foi como um relâmpago. Na verdade, ele havia passado por mim unas
três vezes; eu que não reparei. Sempre na contramão a minha direção. Quando
chegou perto na quarta vez, me deu um golpe tão forte no nariz que desmaiei no
mesmo instante. Só me lembro da mão dele chegando próxima ao meu rosto, cada
vez mais perto, e uma dor nauseante que me levou ao chão. Não era tarde da
noite. Nada disso. Final das dezenove horas no horário de verão; final claro de
tarde. Pensei que estas coisas só acontecessem na calada da noite, na
madrugada, em bairros violentíssimos, em países miseráveis. Mas não. Aconteceu
ali, comigo... Nem vinte horas ainda não eram. Fui arrastada para trás de um
tapume. Bom, sei que fui arrastada pois desmaiei na calçada, e quando acordei,
estava toda ensanguentada da cintura para baixo, com o nariz quebrado, atrás
desse tapume. Minha calcinha rasgada, ainda nos meus tornozelos. A calça jogada
longe. Minha camiseta enrolada amarrava minhas mãos juntas em minhas costas.
Minhas pernas esfoladas no cimento. Dezenas de pedrinhas ainda coladas e meu
corpo pela pressão que meu peso exercia sobre elas. Meu rosto doía muito.
Muitas marcas de mão em minhas bochechas. Devo ter tomado vários e vários tapas
na cara. Quando fecho os olhos para dormir, vejo esta cena se repetindo e
repetindo. Durmo a base de remédios mais fortes a cada mês. Quando acordo, de
instinto levo as mãos à minha cintura, checando se minhas roupas ainda estão
lá. Quando entro no banho, tudo certo até ter de lavar a cabeça. Ao fechar os
olhos, aquela cena agressiva novamente, em fragmentos. Não
consigo me lembrar do rosto do estuprador, mas me lembro nitidamente dos
gemidos. Um filme de terror oitentista. Sinistro. Tão real ainda hoje como no
dia em que aconteceu.
Quando me
acordaram e me socorreram na manhã do dia seguinte, atrás daquele tapume, de me
assustei novamente e tive vontade de sair correndo para muito longe. Eu ainda
estava em estado de choque, tão intenso que tentei agredir um dos socorristas.
Só depois entendi o que estava acontecendo, já na ambulância. No hospital, fui
sedada com doses cavalares até me acalmar. Me deram pontos. Quinze pontos na
vagina e nove no ânus. Me deram um coquetel de medicamentos para combater HIV e
AIDS; inúmeras coletas de sangue. Os médicos disseram que o estuprador não usou
preservativos, e também gozou dentro de mim. Havia esperma no meu útero e na
minha boca. Minha reação foi perguntar imediatamente se eu estava grávida. Que
susto tomei. Que horror. Imaginar estar grávida de alguém que abusou
sexualmente de mim, me agrediu de todas as formas... Por mais compreensiva que
julgo a mim mesma, eu não conseguiria olhar no espelho e saber que dentro de
mim cresce um filho concebido de um estupro, de um ato tão bárbaro, tão
asqueroso. Não que eu não fosse amar esta criança, mas, não sei explicar...
Olhar para ela e lembrar que seu pai foi um estuprador que sequer foi preso?!
Não. Prefiro não passar por isso. Prefiro não mentir para este filho quando, um
dia, ele me perguntar quem é seu pai. Que trauma seria este para ele! Se fosse
uma menina, então? Trazer ao mundo uma menina, uma mulher, mais uma mulher que
um dia pode ser vítima de violência sexual, além de centenas de outras
violências diárias que poderia sofrer? Nunca! Como explicar a ela que um dia
poderia ser vítima de estupro? Mas, por alivio presente e futuro – realmente
não sei se por alegria –, eu não estava grávida. Eu chorava, chorava e chorava.
Chorava muito. Horas e horas aos prantos, desidratando tanto meu corpo em
lágrimas que bolsas de soro eram constantemente reconectadas em minhas veias.
Mais uma
terça-feira. Uma garrafinha de suco de laranja que minha mãe havia acabado de
espremer para mim. Boa música nos fones de ouvido. Algumas centenas de metros
de distância de casa. Uma caminhada suave, mas com ritmo acelerado e constante.
Algumas pessoas conhecidas me cumprimentando. Mais alguns metros no fim da
tarde. O soco no nariz. O desmaio. O tapume. Minha calça atirada ao longe.
Minha calcinha rasgada protegendo apenas meus tornozelos. Minha camiseta
transformada em corrente prendendo minhas mãos sem movimento. Um pinto entrando
e saindo de dentro de mim com tamanha brutalidade que rasga as paredes de minha
vagina seca, de tanto medo. Um jorro despudorado de esperma em meu útero. Não o
bastante, este mesmo pedaço de carne e músculo esfola meu ânus e rompe algumas
pregas. Sangue e mais sangue. Fazer qualquer coisa no banheiro ainda me faz
chorar. Há anos sem transar. Há anos sem me deitar com alguém. Há anos não sei
o que é tocar intimamente um homem. Tive algumas experiências lésbicas para
tentar me relacionar e quebrar o trauma, mas, mesmo sendo uma mulher a me
tocar, meu coração ainda pulsa com receio, com amargura, com aquelas lembranças
que me agridem. Mesmo o filho da puta tendo me deixado viva, sabe-se lá por
que, me sinto morta por dentro e por fora. Não sou mais ninguém. Não vivo. Não
morro. Apenas sofro. Apenas choro.
Às vezes, pela
rua, observo todas as meninas, jovens mulheres e senhoras a minha volta, me
perguntando quantas delas já passaram ou passaram pelo mesmo, por menos ou por
coisa pela qual eu passei. Me perguntar “por
que eu?” é um exercício constante, uma realidade diária. Mas me traz uma
resposta catastrófica, lamentável, que me causa ânsia. Sim! “Porque eu?”. Pelo simples fato de ser
mulher. De ser mais uma estatística. De ser um objeto para o prazer
masculino... um objeto, um símbolo para a sociedade. Um produto qualquer a ser
consumido. Tudo isso pelo simples fato de ser mulher.
Leia o texto 5: Verecundia 5 - Aqui, o relato de uma mulher que não quer que os outros se esqueçam
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Leia o texto 5: Verecundia 5 - Aqui, o relato de uma mulher que não quer que os outros se esqueçam
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Texto 4, de 5. Acesse o link e leia o último texto da série: "Verecundia: cinco textos em oposição a violência contra as mulheres".
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