Verecundia:
Cinco Textos em Oposição à Violência Contra as Mulheres
Texto 3
Resumo

Aqui, o relato
de uma jovem mulher como todas as outras.
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Era tarde da
noite. Bom, não tão tarde. Meia noite e quarenta; mais ou menos. Quase uma hora
da manhã, se bem me lembro. Estávamos saindo de uma festinha, como em todos os
finais de semana. Eu era calouro na faculdade. Primeiro ano de nutricionismo.
Sempre gostei de nutricionismo, alimentação saudável, dietas... esse lance mais
natural, sabe. Mas sem aquele lance bitolado de vegetarianismo fanático, ou os
tipos carnívoros rebeldes, sabe, que não querem nem saber de respeitar sua
própria alimentação. Enfim, primeiro ano. Muita coisa acontecendo. Novos ares.
Novas experiências. Até namorei um rapaz no primeiro semestre. Sei lá se tive
razão em fazer isso. Deveria ter esperado, não sei. Talvez no segundo semestre.
Tive boas amigas, bons professores, ótimas notas. O fato é que saí mais cedo de
uma das festinhas. Não pela manhã, como era de costume. Não quis ver o sol
nascer naquele dia, e fui para casa um pouco antes. O problema é que outro cara
resolver pegar o mesmo caminho que eu. Ele não estava na festa com a gente.
Nunca havia visto aquele rosto. Ele parou o carro, disse que queria conversar,
e logo de cara respondi que não. Mas esse cara era do tipo que não aceitava
“não” como resposta, sabe. Nem ele, nem os quatro amigos que estavam dentro do
carro. Me cercaram em um círculo entreaberto. Me empurravam um encima do outro,
e este me empurrava de volta. Uma brincadeira infantil de um mau gosto tão
inacreditável quanto o que vinha depois. Me jogaram dentro do carro com uma
mordaça na boca e as mãos amarradas nas costas com algum tipo de fita adesiva. Claro
que eu estava chorando, gritando aos prantos. Tantas lágrimas saindo dos meus
olhos que mais pareciam torrentes, tempestades tropicais sobre a selva. Um
deles, depois de pedir várias vezes para eu calar a boca, me deu um soco tão
forte no rosto que desmaiei na hora. Acertou no maxilar, no lado direito. Três
dentes quebrados neste local, só por causa do soco de “cala a boca”. Acordei
com um deles me segurando pelos braços e outros dois puxando minhas calças
pelos pés. Sequer tiraram meus tênis. Puxavam minhas calças com pressa por cima
dos tênis, e sacudiam minhas pernas como folhas de papel. Créditos. Sequer
sabiam tirar um par de tênis. Eu gritava. Claro que gritava, desesperadamente.
Freneticamente. Tão assustada e consciente sobre o que viria a seguir, que mal
conseguia pensar o que gritar em
socorro. Se gritasse “estupro”, ninguém viria. “Assalto”
então, nem pensar. Pensei em gritar “fogo”... Mas tomei outro tapa no rosto que
me abriu o supercílio. Tudo girou como uma roda-gigante, uma espiral infinita
de medo. Queria que me socorressem, que alguém me ajudasse. Mas, ao mesmo
tempo, eu não queria que ninguém me visse naquele estado deplorável de violação
da minha humanidade feminina. Queria pedir socorro, mas não queria que me
vissem humilhada daquela maneira. Cheguei pensar em ir para casa como se nada
tivesse acontecido quando aquilo tudo terminasse, sei lá. Sem contar pra
ninguém.
Rasgaram minha
calcinha como cães famintos rasgando um pedaço de bife de quinta qualidade. Um
puxou para um lado, outro para outro lado. Pude sentir as linhas do tecido
daquela minha calcinha nova rasgando uma a uma... uma calcinha tão linda, de
renda, delicada, elegante... Nunca mais tive uma calcinha como aquela. Na
verdade, todos os modelos me fazem lembrar aquela noite. Noite não tão escura.
Uma noite qualquer. Nada de noite sem lua, noite super escura e misteriosa que
não tem ninguém na rua. Não. Foi uma noite qualquer... Mas não para mim.
Para parar meu
choro, um deles disse que ia enfiar o pau na minha boca. E fez isso. Enfiou o
pau na minha boca de tal maneira que pude sentir a cabeça do pinto na minha
garganta. Vomitei na hora. Foi nojento. Vomitei todo o jantar e as duas taças
de vinho que eu havia tomado algumas horas antes. Ele ficou com tanta raiva que
me bateu com abundância. Os outros três riram, riram muito da situação, dizendo
que ele havia levado um vômito no pau. Que horror. Imagine a cena, quanta
brutalidade, que cena repugnante.
Quando pensei
que não seria nada de mais, socaram o pinto em mim. Fundo. Tão
fundo que senti os testículos dele apertados contra meu corpo. E começou a
meter forte em mim.
Enfiava e tirava aquele pinto sujo dentro de mim, sem camisinha,
é claro. Quem vai se preocupar com segurança quando se está cometendo um ato
incomparavelmente criminoso quanto a este? Nada disso. Sem nenhum cuidado.
Outro deles
disse que queria comer meu cu. Comer forte meu cu. Então me puseram em pé
novamente enquanto um deles deitava no chão, e me empurraram novamente, agora
sobre este que estava deitado. Meteu novamente o pinto em mim. Outro veio por
trás, e enviou o pau no meu ânus. Sem dó, nem piedade. Sem lubrificação. Sem
saliva. Enviou com tamanha violência que me rasgou de imediato. Eu só conseguia
gritar e chorar. Parecia uma eternidade. Não via a hora de um deles tirar uma
faca ou um revolver da cintura e acabar logo com a minha vida para eu parar de
sentir aquela dor e tamanha humilhação. Estranhamente implorei em minha mente
para eles não gozarem dentro de mim, e para nenhum deles ter qualquer doença
sexualmente transmissível. “Por favor,
seu desgraçado”, pensei eu falando com deus, “se você realmente existe e não provou até agora, não os deixe gozar
dentro de mim”. Não pensei isso por maldade. Não quis desafiar nenhuma lei
mística ou religiosa. Na verdade, duvidei da existência de deus ali mesmo,
naquela hora. Que deus permitiria um estupro coletivo? Minha revolta, então,
tinha fundamento.
Fizeram em mim
uma dupla penetração com uma agressividade generosa. Nunca imaginei meu corpo
sendo violado daquele jeito. E quando eu implorava para pararem, ainda com a
mordaça na boca, me batiam ainda mais. Tomei tantos socos, chutes e tapas que
meus sinais motores já não respondiam. Perdi no mínimo um litro de sangue
naquela noite. Pressão baixa. Minha visão variava segundo a segundo entre tons
escuros e claros. Escuros e claros. Como luzes apagando. A cada estocada que
levava daqueles pênis em meu ânus e vagina ao mesmo tempo, cada flash de outro
pinto sendo socado em minha boca, cada instante me levava a implorar pela
morte. É difícil querer sair dessa depois que já não resta mais o que fazer.
Minhas roupas,
eu não fazia idéia de onde estavam. Meus tênis, finalmente conseguiram
arrancar, mas eu também não os via. Tudo o que eu reconhecia diante de mim eram
aqueles quatros seres estranhos me estuprando, tornando minha vida um martírio,
tornando o ato sexual a coisa mais repugnante e indesejada do universo. Nunca
mais consegui transar. Tive dois ou três namorados há muitos anos depois de
tudo acontecer, mas, o cheiro do ser masculino me dava náuseas. Fiquei
eternamente traumatizada. Até hoje não saio de casa sozinha. Tudo o que faço é
acompanhada. Sempre com uma amiga, sempre avisando meus pais, sempre vigiada
por pessoas que podem cuidar de mim (talvez), e que sabem onde vou; pessoas que
recebem minhas ligações avisando que irei demorar mais dez, quinze, vinte
minutos para voltar pra casa.
Nunca imaginei
ser vítima de um estupro, quanto mais um estupro coletivo. Nunca me imaginei
chorando com tamanha decepção quanto a existências de seres humanos capazes de
tamanha covardia. Nunca me imaginei olhando desconfiada para todos os lados antes
de sair pela porta de casa para ir à padaria da esquina comprar algumas
baguetes. Nunca imaginei que pelo resto da vida teria de tomar dezenas de
remédios diariamente para combater as doenças que me transmitiram naquela
noite. Nunca pensei que um dia fosse ter AIDS, e ter minha expectativa de vida
diminuída por ser vítima de um estupro coletivo. E em todo momento naquela
noite, mesmo implorando, não imaginei que eu fosse sobreviver. Minha vida mudou
drasticamente daquela noite em
diante. Nunca mais fui a mesma. E todos à minha volta nunca mais
foram os mesmos, pois desconfio de todos a todo instante agora. Nunca mais tive
certeza sobre nada. Nada, alem de que existem pessoas capazes de cometer
tamanha brutalidade com outro ser humano. Não há um dia no qual eu não chore.
Leia o texto 4: Verecundia 4 - Aqui, o relato de uma mulher que não se esqueça.
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Texto 3, de 5. Acesse o link e leia os outros 2: "Verecundia: cinco textos em oposição a violência contra as mulheres".Leia o texto 4: Verecundia 4 - Aqui, o relato de uma mulher que não se esqueça.
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